Livro «ROMEIROS DE SÃO MIGUEL ARCANJO - 500 Anos de Romarias»

 
 
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Não há nenhum micaelense que não se comova com a toada sentida das orações dos romeiros. Sempre que começa uma nova Quaresma, os caminhos e estradas povoam-se de silhuetas masculinas, vergadas ao peso de uma espiritualidade profunda, percorrendo a ilha de lés-a-lés, em Romarias quaresmais ciosamente mantidas há cinco séculos.

Após o sismo que destruiu, quase por completo Vila Franca do Campo, a 22 de outubro de 1522, pelas duas horas da manhã e onde terão ficado soterradas a quase totalidade dos seus habitantes, um dos primeiros trabalhos foi a construção de uma pequena ermida, consagrada a Nossa Senhora do Rosário, no lugar onde hoje se encontra o Convento de São Francisco. Para ali se dirigiram, passados oito dias da subversão, todos as quartas-feiras à noite, em procissão (Romaria), os poucos sobreviventes e outras pessoas vindas de diversas povoações da ilha, recitando e cantando o rosário, implorando à Advogada dos céus a sua intercessão para as suas vidas. “As procissões” faziam-se do lugar onde hoje se encontra a Praça Bento de Góis, precisamente no lugar onde foi construída a primitiva Igreja de São Miguel Arcanjo, destruída pelo cataclismo.[1]

Teriam sido, estas primeiras “procissões”, a origem das atuais Romarias?

Frei Afonso de Toledo, Dominicano, que previu esta catástrofe e que na véspera do sismo percorreu a Vila a convidar os seus habitantes à remissão dos seus pecados, não foi ouvido como devia e os seus apelos foram totalmente ignorados. O Prior António Jacinto de Medeiros (antigo Pároco da Matriz de São Miguel Arcanjo), no prefácio do meu primeiro livro, também sobre romeiros, refere que “Vila Franca do Campo, capital da Ilha, era muito rica de bens materiais e esses, com certeza, que fizeram os que nela habitavam esquecer a Deus. O apelo de Frei Afonso de Toledo foi semelhante ao de São João Baptista, ao anunciar a vinda do Messias «a voz que brada no deserto».” Frei Afonso de Toledo foi um grande conforto espiritual e moral, para todos os sobreviventes da subversão de 1522 em Vila Franca do Campo.[2] Todos estes relatos históricos podem ser observados minuciosamente e de forma cronológica, no I Capítulo deste livro, designado por «A NOSSA HISTÓRIA». Neste capítulo segui o trabalho desenvolvido na tese de doutoramento da Doutora Carmen Ponte intitulada “Romeiros de São Miguel. Entre tradition et innovation. De l’oralité au texte écrit.” que estudou minuciosamente as romarias desde o século XVI à atualidade. O estudo da nossa história inspira-nos.

Embora, segundo a melhor opinião, as Romarias tivessem origem em Vila Franca do Campo, durante vinte anos, deixaram de realizar-se no “berço das Romarias”, por razões várias, incorporando-se os vila-franquenses neste interregno, nos Ranchos de romeiros de Água d’Alto, Ribeira das Tainhas e de Ponta Garça.

Desde tenra idade que convivo com romeiros, fruto da enraizada tradição da minha família paterna, que foi passando de geração em geração, até chegar aos tempos atuais. Fui impulsionado pelo meu avô José Saêta, grande impulsionador da abertura do Rancho em 1964 e principalmente por meu pai, antigo e experiente romeiro desta Vila, ainda no ativo. Depois da reabertura da ‘Romaria da Vila’ no Jubileu de 2000, experienciei uma Romaria pela primeira vez em 2001. Algo despertou em mim, que ainda hoje, não consigo testemunhar. Em 2002, fui convidado para Contramestre do Rancho e no ano seguinte, em 2003, foi-me confiada a grande e exigente missão de ser o Mestre da Romaria da terra, que um dia viu nascer as Romarias Quaresmais de São Miguel. Após as minhas primeiras duas peregrinações, senti no apelo de Jesus no chamamento dos discípulos, “Vem e segue-me, farei de ti pescador de homens” (Mt. 4, 19-22) o verdadeiro sentido da minha missão. Até hoje, de acordo com os procedimentos regulamentares do movimento, de cinco em cinco anos, após auscultação do Rancho, tem-me sido confiada esta responsabilidade por parte dos irmãos romeiros da Paróquia de São Miguel Arcanjo, desta Vila. Podemos ler no II Capítulo deste livro toda a história e evolução d’ «A ROMARIA DA VILA».

“O segredo de uma boa Romaria está numa boa preparação”, aprendi esta frase com o nosso saudoso Mestre Hermínio Sousa, de tal forma que ao longo destes anos, com a experiência da vida, com a formação espiritual adquirida e com as vivências das Romarias realizadas, elaborei um Manual de Reuniões de Preparação do qual, falo-vos no III Capítulo de um aspeto fundamental do bom êxito de uma Romaria que é «A PREPARAÇÃO DO RANCHO». Um aspeto primordial de uma boa preparação é primeiramente “educar o homem, e só depois educar o cristão” frase esta, proferida muitas vezes pelo nosso Padre José Gregório (antigo Pároco de Ponta Garça). A preparação não pode resumir-se aos “ensaios”, diria mesmo, menos ensaios, mais preparação, isto é, mais catequese.

Para compreender melhor uma Romaria é necessário experimentá-la, ou melhor, vivê-la. A vivência de uma Romaria é tão bela, tão linda, que merece ser partilhada, por isso, de forma a consciencializar quem nunca a experimentou e de certa forma mostrar “a Romaria por dentro”, pode o leitor vislumbrar neste livro, no IV Capítulo de forma precisa n’ «O ITINERÁRIO DA ROMARIA», o percurso diário (possível) da ‘Romaria da Vila’, com a ilustração fotográfica de diversos locais de passagem, das difíceis travessias, dos atalhos e de todos os templos visitados pelo nosso rancho, acompanhada da respetiva oração, cedida por todos os mestres da Ilha, sendo as mesmas, proferidas nas chegadas às igrejas, aos seus padroeiros (oragos), após uma longa jornada de penitência e piedade.

Desde 2003, na revisão do regulamento dos romeiros de São Miguel, que o Grupo Coordenador do nosso Movimento, tem apelado ao compromisso diário dos irmãos romeiros, como “cristãos autênticos” quer no seio familiar, nos seus ambientes, mas acima de tudo na sua comunidade cristã, junto das suas Paróquias, como Movimento ativo e presente, quer em ações sócio-caritativas, na contínua formação cívica e cristã, e acima de tudo na vertente pastoral. Já é tempo de deixarmos de ser chamados “romeiros de oito dias”. Felizmente já são muitos os Ranchos de romeiros que criaram grupos corais, maioritariamente compostos por romeiros, como forma de congregar também antigos irmãos. O testemunho do pós-Romaria pode ser observado no V Capítulo onde são evidenciados todas as atividades do «GRUPO PAROQUIAL DE ROMEIROS» da ‘Romaria da Vila’. Depois do estudo e da piedade, é imperativo haver ação. Agora sim completamos, o tripé de um verdadeiro cristão romeiro.

Se um cristão faz o bem, um cristão romeiro deverá “FAZER O BEM, BEM FEITO!”, fruto dos propósitos vividos numa Romaria: a penitência, a oração e a conversão.

 

Carlos Vieira

Mestre da Romaria da Matriz de São Miguel Arcanjo de Vila Franca do Campo
 
 
 
 
 
 
 
 
 



[1] VIEIRA, Carlos M. Bolarinho. (2005). “Diário de uma Romaria”, edição da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, prefácio, p. 9.

[2] Idem (Ref.ª 1), p. 10.